Uma primeira consideração que faço é que o museu nunca é uma expressão direta da vida, como um pedaço de vida arrancada da realidade e exposta em um recinto. O museu é sempre uma interpretação da vida, uma seleção específica e significativa da realidade. Quando não colocamos essa apreciação logo de saída, existe o perigo de ocultar a interpretação e o autor da interpretação.
A palavra “vivida” nos refere, ao autêntico, ao que constitui parte da experiência viva de culturas e sociedades diversas. Mas devemos recordar Tony Bennett, “o visitante de um museu nunca está em uma relação de contato direto, sem mediações, com a ‘realidade do artefato’, e portanto, com a realidade do passado. Daí, essa ilusão, esse fetichismo do passado é em si mesmo um efeito do discurso. Porque a concretude aparente do artefato de museu é conseqüência da familiaridade que resulta de sua colocação em um contexto interpretativo que se molda a uma tradição e que tem ressonância nas representações do passado que têm uma ampla circulação social.”
De tal forma que as representações históricas podem nos parecer “vivas” ou autênticas, unicamente porque dão concretude a interpretações que temos visto repetidamente e que têm cobrado uma legitimidade por sua associação com imagens amplamente difundidas acerca de uma comunidade ou uma cultura.
Atualmente , o aspecto de ser “vivido” pode referir-se a outro aspecto das representações culturais, quer dizer, o grau no qual captam movimento e animação, e são capazes de envolver todos os sentidos em uma experiência de grande impacto e espetacularidade. Pode se considerar como “história vivida” uma simulação da vida em épocas anteriores, que utilize todos os recursos da tecnologia moderna para recriar sons, cheiros e movimento.
Para muitos é importante esclarecer: não queremos um museu da “história vivida” entendido como um entrave de etnicidade simulada, um cenário que recria a história, o mito e o folclore em um espaço antisséptico e seguro para os visitantes, um espaço que trivializa significados profundos, que descontextualiza a cultura da realidade de pobreza e exclusão que vivem as comunidades. Mas, sobretudo não queremos espaços onde a animação da apresentação oculte a voz dos que falam e o direito que têm as comunidades para falar de si mesmas por si mesmas. Não buscamos que o objeto cubra vida no museu, mas que os sujeitos sociais, as comunidades, projetem suas vidas como interpretadores e autores de sua história.
Paulo freire assinala que o homem é sujeito porque é um ser de relações, capaz de refletir, de fazer crítica, de ser consciente de sua historicidade, de optar, de criar e transformar a realidade. Ser sujeito é a vocação ontológica do homem, pela qual não pode renunciar sem converter-se em um mero espectador dos feitos, um receptor de receitas apenas, um objeto. Para nós, o museu comunitário é uma ferramenta para a construção de sujeitos coletivos, enquanto as comunidades se apropriam dele para enriquecer as relações no seu interior, desenvolver a consciência da própria história, propiciar a reflexão e a crítica e organizar-se para a ação coletiva transformadora.
Ser sujeito implica auto-conhecimento e o museu comunitário é uma ferramenta para que a comunidade construa um auto-conhecimento coletivo. Cada pessoa que participa selecionando os temas a estudar, capacitando-se, realizando uma entrevista ou sendo entrevistado, reunindo objetos, tomando fotografias, fazendo desenhos, está conhecendo mais a si mesmo e ao mesmo tempo está conhecendo a comunidade à qual pertence. Está elaborando uma interpretação coletiva de sua realidade e de sua história.
Ser sujeito igualmente implica criatividade e o museu comunitário propicia a criação coletiva toda vez que oferece uma oportunidade às pessoas que participem dos processos coletivos para expressar suas histórias de sua própria maneira. A pessoa criativa não aceita soluções dadas, busca inventar novas formas de abordar sua realidade e o museu comunitário é um espaço de organização para impulsionar novas propostas e projetos comunitários.
Assim, o museu comunitário é uma opção diferente do museu tradicional. A instituição do museu surgiu com base em uma história de concentração de poder e riqueza, que se refletia na capacidade de concentrar tesouros e troféus arrancados de outros povos. Para Napoleão, Paris era o lugar onde as obras tinham “seu verdadeiro lugar para honra e progresso das artes, sob o cuidado da mão de homens livres” e alimentou o Louvre de troféus de guerra dos lugares que caíam sob seu império. O museu comunitário tem uma genealogia diferente: suas coleções não provêm de despojos, mas de um ato de vontade. O museu comunitário nasce da iniciativa de um coletivo não para exibir a realidade do outro, mas para defender a própria. É uma instância onde os membros da comunidade livremente doam objetos patrimoniais e criam um espaço de memória.
Em um museu comunitário o objeto não é o valor predominante, mas sim a memória que se fortalece ao recriar e reinterpretar as histórias significativas. Assim, os membros da comunidade utilizam o museu comunitário para recriar como eram as coisas antes, para reviver eventos e práticas que os marcaram. Porém o museu também é um instrumento para analisar a memória, para reinterpretar o passado e discernir o aprendizado de experiências anteriores.
No museu comunitário as pessoas inventam uma forma de contar suas histórias e dessa maneira participam, definindo sua própria identidade em vez de consumir identidades impostas. Criam novo conhecimento em vez de amoldar-se a uma visão central, à interpretação dominante da história nacional que sempre os exclui e os esquece ou os manipula os registros. Lutam contra uma longa história de desvalorização, ao valorizar suas histórias e os feitos cotidianos da vida comunitária. Assim, se apropriam de uma instituição criada para a elite para afirmar-se e legitimar seus próprios valores.
O museu comunitário se converte em uma ferramenta para manejar o patrimônio sob as formas do poder comum. Por um lado, serve para manter ou recuperar a posse de seu patrimônio cultura material e por outro, permite uma apropriação simbólica do que é seu, ao elaborar o que significa em sua própria linguagem. Através do museu, a comunidade busca exercer poder sobre o que é seu e luta contra a expropriação.Assim , o museu comunitário não responde a decisões de autoridades centrais, nem no seu conteúdo nem em sua operação. Vincula-se diretamente à comunidade, porém não depende de instituições estaduais ou federais. O grupo que dirige o museu é uma instância organizada da comunidade, seja vinculada ao governo local, seja constituído como organização não governamental. Através do tempo, permite gerar habilidades, experiência e recursos sociais que fortaleçam a capacidade para a autonomia.
Ao ser um instrumento parar gerar consciência, o museu comunitário é necessariamente um instrumento para convocar à ação. É um espaço de organização onde a reflexão sobre a história desemboca em iniciativas para intervir nessa história e transformá-la. Surgem projetos para fortalecer a cultura tradicional, para desenvolver novas formas de expressão, para impulsionar a valorização da arte popular, para gerar turismo controlado pela comunidade. Há múltiplas iniciativas de capacitação para abordar as necessidades sentidas pelos diferentes setores da população.
O museu comunitário é um processo, mais que um produto. Combina e integra processos complexos de constituição do sujeito coletivo da comunidade, através da reflexão, autoconhecimento e criatividade, processos de fortalecimento da identidade, através da legitimação das histórias e valores próprios; processos de melhoramento da qualidade de vida, ao desenvolver múltiplos projetos no futuro, e processos de construção de forças através da criação de redes com comunidades afins. É um processo coletivo que ganha vida no interior da comunidade e por isso podemos afirmar que é um museu “da” comunidade, não é elaborado fora “para” a comunidade. O museu comunitário é uma ferramenta para avançar na autodeterminação, fortalecendo as comunidades como sujeitos coletivos que criam, recriam e decidem sobre sua realidade.
*Centro INAH Oaxaca.
*Patrícia Brito.